"Inverno. Ponto de ônibus. Não dirijo. Frio. O vento levanta pedaços de gelo. Frio. Eu com a criança no colo. O traficante chega perto. Me reconhece. Nessas horas a memória de tubarão surge do nada, não é não, meu chapa? O cumprimento. A pedra de amolar facas - o cumprimento. O que faz acordado às dez da manhã? Essa gente não dorme. Não trabalha. Igual a mim. Eu com o menino no colo. São Cristóvão. Um picolé esquecido na caixa, no frio. Com o menino no colo - todo coberto. “Papai, por que você não tem um carro? Um carro igual o do Batman?” Porque eu sou doido filho. O traficante sorri quando escuta Batman. Não entende a nossa língua. Eu não rio de volta. Frio. Vento. Frio. “Esse é o seu filho?” – ele me pergunta. Eu digo que sim e “você quer a chave da minha casa?” Calma – ele diz. Mais vento. Mais frio. O vento sopra gelo na minha cara. Protejo a criança. Do traficante. Do bandidinho. E do frio. Não sou lobo. Não sou rena. Como consegui viver aqui quinze anos? Não sei. Devo ser doido. O preço das coisas. Não é fácil. Liguei o mantra: “agora encara agora encara...” Viver debaixo de um céu contrariado. Um céu que faz caretas. Um céu que sente frio. O ônibus chega igual uma geladeira vazia. O traficante entra. Senta no banco de trás. Eu com o menino na frente. Frio. Ninguém tem ideia do que seja o frio. Frio na alma, frio no corpo, frio no pau. Então eu penso: “Em algum lugar do mundo deve ter alguém comendo uma mulher e segurando o vômito. Em algum lugar do mundo deve ter um homem comendo outro homem e segurando o vômito. Deve ter alguém comendo uma criança e segurando o vômito.” Desço do ônibus. E antes de escorregar no gelo perto da porta com a criança no colo eu concluo que o meu enjoo não é diferente do dos outros. É igual."
Jorge Cardoso
Jorge Cardoso
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